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CIÊNCIA PROCURA ESCAPES NO ORÇAMENTO

Como os estudantes de mestrado e doutorado têm enfrentado os cortes para pesquisas

GIRRANA RODRIGUES

Foto: Cláudia Madalon

A pesquisadora Jacqueline Teixeira iniciou o doutorado em Antropologia durante o melhor momento do CNPq, hoje luta para finalizar sua pesquisa

Iván Sánchez* havia acabado de terminar o mestrado quando escreveu uma carta para o Itamaraty solicitando a sua passagem de volta para seu país natal. Após 30 dias sem obter uma resposta, o estudante decidiu mandar e-mails cobrando um posicionamento da embaixada. Nunca obteve retorno.

Em maio de 2016 ficou sabendo pelos amigos que o Itamaraty estava passando por uma reestruturação interna devido à posse de José Serra como ministro das Relações Exteriores. A troca no comando do órgão, em conjunto com os cortes no orçamento de Ciência e Tecnologia, influenciou o repasse de verbas.

 

Sánchez era um dos beneficiários do PEC-PG (Programa de Estudantes - Convênio de Pós Graduação), que concede bolsas para alunos de países da América Latina, Caribe, África, Ásia e Oceania.

 

O programa é fruto da parceria entre a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e do MRE (Ministério das Relações Exteriores) por meio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e do DCE (Divisão de Temas Educacionais).

 

A Capes é responsável pelas bolsas dos cursos de pós-graduação, mestrado, e doutorado, além de conceder recursos a eventos de caráter científico e tecnológico. Já o CNPq concede bolsas aos jovens que estão cursando o ensino médio, o ensino superior ou pós-graduação e desejam atuar em pesquisas de desenvolvimento.

Artes: Larissa Ferreira

Diretamente o programa não sofreu nenhum corte, mas com a crise econômica as entidades que o mantém tem enfrentado precarizações. Neste ano, o corte total da verba da Capes foi de 75%. Na prática, isso significa menos recursos para bolsas, traduções, congressos e viagens.

 

Nascido na Colômbia e formado em Sociologia, Sánchez chegou ao Brasil em 2014 para defender seu estudo sobre estratégias organizativas das mulheres na região do Sul Ocidental da Colômbia. Durante os 24 meses, o mestrando recebeu a bolsa de R$ 1.500, valor que utilizava para viver no Brasil enquanto escrevia sua dissertação. Para compor a renda, também dava aulas de espanhol.

 

Com o fim do auxílio, no entanto, cogitou até voltar a Colômbia. “Achava que a situação de incerteza política não era o melhor cenário para escrever a dissertação, mas minha orientadora achou melhor eu continuar aqui. Com a ajuda dos meus amigos, fui o primeiro a apresentar a defesa.”

 

Quando soube que o Itamaraty não pagaria a passagem de retorno, entrou em desespero. “Meu visto de estudante venceria dali duas semanas e era R$ 500 para renovar. Eu não teria esse dinheiro.”

 

Diante da incerteza de Sánchez, um grupo de amigos do estudante pensou em fazer uma “vaquinha” para que o amigo pudesse voltar para casa, mas, por sorte, foi um colega dele que emprestou o cartão de crédito e o mestrando conseguiu comprar a passagem, que era de responsabilidade do Itamaraty. “Estou pagando até hoje.” Em agosto de 2016, o recém-formado mestre embarcou no avião e retornou à Colômbia. “Eu tinha que voltar, mas queria ter permanecido no Brasil e continuar os estudos de doutorado.”

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A doutoranda Jacqueline Teixeira é uma das pessoas que ajudaria a juntar dinheiro caso o estudante não tivesse conseguido outras alternativas para comprar a passagem.

A pesquisadora esperava a reportagem em uma das salas do prédio da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a FFLCH. O pólo deu origem ao que viria a se tornar a maior universidade pública do Brasil e uma das maiores da América Latina.

 

Jacqueline é bolsista do programa de doutorado em Antropologia. Formada em Ciências Sociais, ela ingressou na especialização em 2013, nos anos de ouro das verbas da universidade.

 

Sua turma chegou a ter 26 estudantes, dos quais 19 conseguiram bolsa para manter as despesas. Quatro anos depois, no entanto, com um país em recessão o cenário é outro. Em 2016, apenas dois estudantes tiveram o benefício mensal concedido para elaborar seu estudo. “O meu medo é que a minha bolsa que vai acabar em abril do próximo ano, deixe de existir”, afirmou.

 

O enredo da pesquisadora é mais um reflexo dos cortes que a Capes e o CNPq. Em abril deste ano, a Capes bloqueou 7.408 bolsas de pós-graduação no país, o que representa 9% do total de 80.906 incentivos pagos para alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado. Até agosto, das bolsas que foram suspensas, somente 4.187 foram reativadas, ou seja, cerca de 3.221 incentivos ainda estão congelados.

 

A turma de Jacqueline foi a primeira a sofrer o corte nas bolsas-sanduíche. Sem ela, o período de pesquisas no exterior teve que ser cancelado.

Para encaminhar as verbas, a Capes classifica os cursos em ProAP e ProEx. Dos 26 programas da FFLCH, 19 são ProAPs. Nos anos em que a economia ia bem, um ProEX chegava a receber R$ 2 milhões enquanto um ProAP recebe R$ 12 mil. “Se você corta 75% de quem ganha R$ 2 milhões, é um valor significativo, mas essa pessoa ainda vai ficar com um montante para manter bolsas e manter atividades. Agora quando você corta 75% de quem ganha R$ 12 mil ao ano, o curso não consegue fazer mais nada”, explica a antropóloga.

 

Para desenvolver sua pesquisa, Jacqueline recebe uma bolsa de doutorado no valor mensal de R$ 2.200 durante quatro anos. A duração do doutorado na USP pode levar até quatro anos e seis meses, o que já é um problema, visto que o aluno precisa se manter por mais seis meses.

 

Ela confessa que teve medo de perder seu benefício durante todo o período que estudava, mas que agora não acredita nessa possibilidade. “Seria um escândalo muito grande tirar de quem já está recebendo. Tradicionalmente a minha bolsa termina em abril e passa para o ingressante do ano que vem, mas acho que eu sou a última pessoa a utilizá-la.”

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A arquitetura dos prédios que rodeiam a FFLCH dá origem a um espaço que lembra a chamada ágora. Na antiguidade, era um local que reunia cidadãos dispostos a discutir os problemas da polis grega e era frequentado por cidadãos comuns para discutir as questões da cidade.

Em pleno século 21, no bairro do Butantã, o vão da faculdade parece cumprir um papel parecido. No espaço, é possível avistar, mesmo em um dia chuvoso, rodas de debate e barracas de trocas de livros.

 

O cenário serve a quem chegar para lembrar a importância da Ciência e Tecnologia na formação de um Estado.

 

Em um breve passeio pelas instalações da Universidade, Jacqueline mostrou um pouco do prédio e explicou com mais detalhes o tema de sua pesquisa.

 

Ela estuda gênero, religião e políticas públicas dentro da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). “Eu olho para uma igreja evangélica tentando pensar modos de produção a partir de uma ideia foucaultiana de cuidado de si, que seria o modo como você se preocupa com você. Penso esse governo de si a partir de uma série de políticas que são pensadas por um grupo religioso.”

 

Segundo a doutoranda, existem programas dentro da igreja que explicam como deve ser o modelo de homem e de mulher para alcançar a teologia da prosperidade e conseguir enriquecer. “São programas que constroem os gêneros em dimensão pública, porque essa mulher precisa estudar e trabalhar. Esse homem precisa se voltar para o espaço doméstico e precisa ser um marido presente. Isso coloca em discussão a posição do homem e da mulher numa relação heterossexual”.

 

Um dos exemplos de como a agência religiosa vai interferir nos projetos de políticas públicas é o projeto Raabe, realizado pela IURD. O intuito do projeto é atender mulheres em situação de violência e tem como fundamento a Lei Maria da Penha.

 

Em estados que não possuem um nicho da defensoria voltada para atendimento feminino, as advogadas da igreja, assistentes sociais e as psicólogas atendem mulheres que passaram por situação de violência.

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Curiosamente, o caminho feito até o local da entrevista com Jacqueline, próximo à entrada do Prédio de Filosofia, possui uma parede cheia de lambe-lambes onde é possível ler, em meios aos que pedem a saída de Michel Temer, alguns com os dizeres que o Estado deve ser laico.

A pesquisadora explica que no Brasil é comum o Estado organizar políticas públicas em parcerias com as igrejas. “Temos uma constituição laica, mas esse estado sempre se construiu abrindo espaços específicos para religiões, que nesse momento precisam acionar uma ideia de religião pública, porque precisam se transformar também.”

 

No começo da entrevista, Jacqueline comentou “já trabalhei até de garçonete”. Hoje, graças à bolsa concedida pelas Capes, algumas de suas pesquisas já viraram publicações, outras ainda irão virar.

 

Especializações e estudos como este ajudam a melhorar a colocação do Brasil na área de Ciência e Tecnologia, mas o investimento ainda é baixo se comparado aos países desenvolvidos. Em 2005, o Brasil investia 0,97% do Produto Interno Bruto (PIB) em atividades de ciência, tecnologia e inovação, em 2013 o investimento chegou a 1,66% do PIB, sendo 0,93% públicos e 0,73% privado.

 

Antes de irmos embora, Jacqueline faz questão de enfatizar que, “em Humanidades, a gente tem sempre a impressão de que nossas pesquisas não servem para nada, mas não é assim. Em uma pesquisa antropológica, temos o desafio de dar voz para as pessoas. De mostrar como o Estado está produzindo determinadas políticas e como as minorias estão se relacionando”.

*O nome foi trocado para preservar a identidade do entrevistado

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